A morte sempre vence o tempo

Data: Três de um mês chuvoso, Poços de Caldas, Núcleo Veterinário.

Baseado em histórias reais

A morte sempre vence o tempo. Às vezes não.

Os tutores chegam e é dia de visita.

Como é difícil lidar com dores tão próximas, com rostos tão familiares.

Eu mantenho a serenidade e tranquilidade, tento trazer as lágrimas deles para a vida, enquanto seguro nas mãos um colchãozinho e uma coberta e anuncio:

– Já vou trazer o pequeno!

O casal se desloca pra sala 1 enquanto eu busco o Miau.

Ele, na baia, se apresenta apático, sonolento e sem muitas reações, mas interage após um cafuné, volta o olhar e busca a mão com os olhos toda vez que é tocado.

A médica veterinária retira a alimentação enteral, fecha os acessos do soro, enquanto penso:

– Vamos lá pequeno, você está com o corpo muito molinho. Preciso de você, não está na hora de ir embora.

A poucos minutos atrás, ao conversar com ele (sim, eu converso com todos os pacientes), tento de uma maneira fantasiosa e infantil descobrir o que eles têm, o que sentem e espero uma resposta em palavras de todos, em vão ou não, eu o faço.

O corpo está sem tônus, ele aceita a manipulação tranquilamente, levo-o nos braços até a sala 1 e lá começamos a conversa.

A mãe, logo se aproxima da mesa, em pé, desliza sua mão por todo corpo, começa a conversar e chorar.

O pai sofre. Em silêncio, engasgado, observa, mas não toca. Passam alguns segundos, quase que acanhado encosta no dorso do animal e, com receio, retrai a mão.

– Vamos todos sentar?! Eu vou colocar ele na mesa de atendimento, ficamos todos sentados e brincamos com ele.

Pronto, era o que precisava, eu, o miau, e os pais.

O gato precisava “falar”.

Os tutores tinham em mente que a eutanásia aliviaria o sofrimento. Miau é felv +, emagreceu 3kilos em pouco tempo além de ter surgido linfomas no tórax o que prejudicou sua respiração. O tutores tinham em mente aliviar a angústia. Naquele momento, deles.

Sentados, quase que admirando ou aguardando algo, estávamos todos em volta do Miau.

– Me conte a história do Miau!

– (…) uma vez, uma médica veterinária nos disse que ele precisaria de uma vida de príncipe. Foi isso que fizemos.

Nesse momento, mãos se entrelaçam em pelos finos, enquanto fuço se recosta no nariz.

Pronto.

Voltamos à vida!

Já contei antes sobre o quanto o Tempo é algo importante na nova medicina veterinária.

Miau tenta levantar, cambaleia, todas as mãos de seus pais ao proteger enquanto eu anuncio:

– Deixa. Está tudo bem. Deixa ele andar.

Miau, respira ofegante, descansa e parte pra mais uma investida.

As pernas afirmam, ele caminha três passos, balança, abaixa a cabeça, se mantém com todas as forças na mesa.

Silêncio.

Todos assistem o esforço.

Ele volta a andar.

Mais três passos, encosta num enfeite de natal, cheira, levanta o fuço, curioso, exausto, deita.

A respiração ofegante, pulsa firme, insiste, luta contra o linfoma, contra a felv +, contra as obstruções, mas se cansa.

– Sei que gostariam de aliviar o sofrimento de todos, mas o Miau está aguentando firme e quer viver.

– Entendemos, doutor. Vamos deixar ele aqui como disse. Ele melhorou muito de ontem pra hoje e vamos fazer o possível e o impossível por ele. Ele está em nossas orações.

Tempo.

Preciso voltar com Miau pra baia e esquentar seu corpo, dar um descanso, ele já ganhou mais tempo.

Logo em seguida, entro na sala 1, os pais em pé, aos choros me perguntam:

– O que fazer depois?

– Depois?

– Depois que tudo passar?!

Olho nos olhos de cada um com uma resposta técnica.

Emparelho toda ação com uma resposta simples.

Respiro fundo e me engasgo com as respostas complexas que não as tenho.